A travessia
Parada em frente à porta não consigo tocar na maçaneta. Fitá-la é como fogo ardente que gela meu coração em contrapartida. Num arrepio que começa na cabeça e se espalha como seiva até os dedos, me vejo tomada por uma ansiedade nada comum. Seu casaco ainda pendurado na entrada me faz acreditar que ele ainda está quente. Mas não ouso mais que supor. Lá fora a luz brilha forte, mas assusta pela beleza. Ela destemida perfura vãos na madeira e se joga no chão ao meu lado em fragmentos brilhantes e sutis. Talvez seja um sinal de que tudo fica bem do outro lado.
De mala pronta
Alienação opcional é o que escolhi por uns tempos. Trabalhar sem pensar no fim de semana. Dormir sem pensar no sia seguinte. Sair de casa sem pensar na volta. Levo o mundo no bolso e deixo as lembranças em cima da mesa. Na mala não cabem sorrisos alheios. Só os meus.
Ressaca de carnaval
Finalmente cornetas se calam, bailarinos descansam, serpentinas se entulham pelo chão e as ruas voltam ao vazio cotidiano. A ressaca da alegria de muitos ainda é a festa da tristeza de outros. Pierrot não acha graça no Carnaval. O interessante é que muitos ainda zombam do coitado se fantasiando com suas lamentações. Talvez apenas o Pierrot entende o que é ter lágrimas amargas e facas afiadas ao invés de sorrisos estampados e confetes em mãos. Lágrimas encombrindo o passado e facas para matar o que dele vier assombrar. Sigo despedindo da folia, tirando meu bloco da rua. A festa acabou antes mesmo de começar. Mas eu não tenho pressa, meu carnaval é mais animado fora de época.
O interrogatório
Os dias somam-se às minhas perguntas. Já nem sei se vivo mais dias ou se faço mais perguntas. Investigações minuciosas que parecem querer arrancar de mim a todo custo a verdade. Mas eu não sei qual verdade. A luz forte balançando sobre nossas cabeças. Você me interroga e eu te devolvo o ponto. Deixo tudo na narrativa e compartilho a minha loucura com você. É como um virus, caro amigo. Começa lento. Algumas dúvidas. Pensamentos frouxos que você nem sabe por onde escorregaram. E por fim, a paranóia. Esses questionamentos não vão te levar ao dia do crime. Você não sabe aonde quer chegar por isso não sabe por onde começar. Tão simples. Tão doce. Tudo não se passou apenas em uma noite. Vasculhe mais, encontre o calendário. Nele marquei cada singelo dia que passou por você despercebido. Os mesmos dias que me arrancaram lágrimas, sonhos e palavras.
Passado ainda presente
Parei de registrar banalidades durante momentos de extrema felicidade, talvez porque cheguei a pensar que escrever tomaria meu tempo tão interessante naquele momento. A verdade é que os dias excitantes se foram. E novamente estamos frente a frente. Eu e a tela brilhante. E agora o que tenho a lhe dizer? Nada de tão gracioso. Tenho lamentações apenas. Mas não vou desgastá-la com coisas do tipo, minha querida. Quero apenas que saiba o quanto estive bem dias atrás. Uma felicidade de molhar os olhos e encher os pulmões. Se eu tivesse morrido teria sido sorrindo, sem desejar nada a mais ou a menos. Imagine agora o vazio em que me encontro. Mais uma vez é preciso aguardar, aguardar, aguardar...
Antes de dormir
Ela fita os vãos da janela. De ponta cabeça, tenta formar imagens com as nuvens. Talvez ela quer mesmo é formar pensamentos. Os minutos correm. A trilha sonora já não é tão empolgante. A luz azul enche o quarto e seus olhos. Lentamente vai mergulhando em memórias distantes e episódios recentes. Não sabe qual tem melhor gosto, mas está certa de que nunca imaginou estar ali.
Cotidiano
Faz um bom tempo que não corro meus dedos pelo teclado querendo dizer algo que nem todos entendem aqui. Resolvi retomar essa alegria momentânea, até porque não estou vendo nada melhor no momento. Não tenho grandes histórias nem palavras melosas ou de impacto agora. Só uma vontade de falar com alguém. Que no caso, só pode ser meu computador. Interessante minha interação esses tempos. Acordo sem "bom dia". Tomo café com a Ana Maria Braga. Fico os 10 minutos de sempre procurando minhas chaves e enfim saio de casa. Começo esperando o elevador. Dentro dele é engraçado, as vezes é preciso dividir o cubículo de metal com mais alguém. O intrigante é que os olhares são rápidos, os gestos cautelosos e as palavras pouquíssimas. Mas é um dos poucos momentos do dia em que ainda me deparo tão de perto com alguém da mesma espécie. Momento marcante de fato. O "oi" para o porteiro. Pobre porteiro, passa o dia com sua caixa mágica a cores e só, ouvindo estalos de portão travando e destravando. (A parte que odeio é acordá-lo de um cochilo bom.) A partir daí, só rua, velocidade, olho no relógio sempre. De repente muitas pessoas aglomeradas, mas nenhuma que eu me lembraria depois. Complicado isso. Mas também... Me lembro de pouca coisa. [risos] Acho melhor assim. E ruas e mais ruas. Rodas. Pernas. Tudo se mistura. E quando os ruídos acabam. Estou de volta com o velho amigo computador. Companheiro de refeições. Informante do mundo. Ele me consola com seus horóscopos. Me condena com certas reportagens. Pena que não alivia minha dor nos pés e nas costas. Mas é um excelente companheiro na hora do café. Manhãs, tardes e noites frente à luz hipnotizante da tela quadrada. Meus dedos já se movem por si só pelo teclado. Mais uns biscoitos. Mais uma olhadinha pra televisão, que outrora já foi companheira. Mas isso foi antes, nos tempos em que os desenhos eram legais. Quando eu achava que beijos eram nojentos. [risos] Boa época a infancia. Voltemos ao relato de um dia da minha vida correspondente a um de "feira",claro. Chega a hora de cama sem "boa noite" e reviradas de insônia. É sempre um longo caminho até que tudo se apague realmente. Mas é nessa hora que tenho silêncio, escuridão e raramente um sonho. [risos]
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